José Wanderley Dias:

o homem dos 10 mil

pontos de vista

Considerado um dos intelectuais mais influentes do Paraná no século 20, José Wanderley Dias tinha raízes em Minas Gerais: nasceu em Nova Lima, em 26 de fevereiro de 1925. Foi o primeiro de dez filhos do comerciante Eurico Dias de Magalhães e da professora Vera Maria Wanderley Dias, de quem herdou profundo gosto pelos estudos. Aos dez anos, após o falecimento da mãe, ele foi admitido como interno no tradicional Colégio Santo Antônio, na cidade mineira de São João Del Rey – instituição em que estudaram grandes personalidades brasileiras, como o ex-presidente Tancredo Neves e o escritor Guimarães Rosa. Quando terminou seus estudos secundários, retornou a Nova Lima, onde, ainda adolescente, passou a dar aulas de Português, no Liceu Imaculada Conceição. Mas o futuro o aguardava muito além das salas de aula e das montanhas de minério de sua cidade natal.

Aos 17 anos, diante das obrigações militares e com muita vontade de continuar estudando, José Wanderley Dias tomou uma decisão que alterou completamente o curso de sua vida: embarcou sozinho em um trem e partiu de Minas Gerais para Curitiba, com o objetivo de fazer o Curso de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) e cursar Medicina na Universidade Federal do Paraná (ainda não federalizada, à época), a primeira universidade do Brasil. Sem conhecer ninguém na capital paranaense, hospedou-se na primeira pensão que encontrou em frente à antiga Estação Ferroviária. Para ganhar a vida, fazia o que melhor sabia fazer: escrever. Ainda na década de 1940, foi repórter, revisor e editorialista de diversos jornais de Curitiba. Nessa época, realizando seu grande sonho, começou a cursar a faculdade de Medicina (iniciou também o curso de Química), na Universidade Federal do Paraná. No entanto, ele logo compreendeu que sua vocação o chamava para outra área, para junto das ideias, das emoções e das palavras. Como ainda não havia cursos superiores de Jornalismo no estado, optou pelos estudos jurídicos, obtendo o grau de bacharel em Direito pela UFPR, em 1953, na Turma do Centenário da Emancipação Política do Paraná. Com a graduação, prestou concurso e se tornou advogado da Caixa Econômica Federal – cargo que exerceu até sua aposentadoria, em 1986, como chefe do setor jurídico no Paraná. Respeitado cultor do Direito, chegou também a exercer a função de juiz do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná.

Indiscutivelmente, Wanderley Dias construiu uma sólida carreira jurídica. Seu grande legado, contudo, foi impresso na Comunicação e na Literatura do Paraná – e na alma de seus leitores e ouvintes. Repletos de sabedoria, seus escritos eram (e são) capazes de emocionar a todos, não pelo fato de o autor conhecer muitos idiomas (poliglota, dominava Português, Inglês, Espanhol, Italiano, Francês, Alemão e até Latim), mas porque era fluente na universal linguagem do sentimento, que fala diretamente ao espírito. Seu dom foi evidenciado a partir de 1951, quando ele passou a publicar, no jornal O Estado do Paraná, a coluna de crônicas que o faria conhecido em todo o estado (e até fora dele): “A vista de meu ponto”. Nessa época, seus textos conquistavam também as ondas radiofônicas da histórica Rádio Guairacá, onde elaborou alguns dos mais célebres programas e novelas da era de ouro do rádio paranaense. Foi nesse período que começou a escrever a sua mais bela e real história, ao conhecer a mulher que dividiria consigo o protagonismo de seus dias até a cena final da vida, a rádio-atriz Neuza Maria Grillo Soares, com quem se casou logo após sua formatura em Direito – e com quem teve seus cinco filhos (José Júnior, Eduardo, Renato, Vera Beatriz e Gilmar).

O talento de Wanderley Dias foi repercutido em muitos meios. Trabalhou, inclusive, no início da televisão paranaense. Mas era mesmo apaixonado pelo jornal e pelo rádio, onde sua palavra valia mais do que mil imagens. Além da Rádio Guairacá, ele atuou na Rádio Clube Paranaense e na Rádio Colombo, que passou a transmitir diariamente suas crônicas publicadas na coluna “A vista de meu ponto” – em 1972, a coluna deixou de ser impressa no jornal O Estado do Paraná para ganhar destaque nas páginas do jornal Gazeta do Povo. Membro do Centro de Letras do Paraná, tido por muitos como o mais brilhante e prolífico cronista paranaense de seu tempo, publicou nada menos que 10.229 crônicas, muitas delas veiculadas por jornais de Portugal, Espanha, França, Israel, África Portuguesa, Polônia e Ucrânia. Ganhou vários prêmios literários, inclusive internacionalmente, como o prêmio “Racconti del Serra”, promovido pela Serra International da Itália, na Scuola San Rocco de Veneza, em 1992. Boa parte de seus escritos também foram publicados em oito livros: “De nuvens e de areia” (1976), “Pegadas de meu caminho” (1979), “O que o vento conta” (1982), “Canção do não-esquecer” (1982), “Por encanto, só por enquanto” (1985), “A vida passou por mim” (1988), “Com muito mais pra dizer” (1991) e “Ao som das flautas de bambu” (1991). Ao apresentar essa última obra (com crônicas escritas por José Wanderley Dias sob seu pseudônimo Rhámar l'Húmistan), Helena Kolody, a mais celebrada poetisa paranaense, resumiu a opinião de incontáveis leitores: “Filósofo-poeta, mestre consumado, Wanderley Dias (...) semeia fecundos ensinamentos nos jardins de suas histórias bem urdidas”.

Filho de professora, homem que se fez por meio do estudo, José Wanderley Dias dedicou boa parte de sua vida à Educação. Foi presidente do Conselho Estadual de Educação do Paraná e assessor dos ex-ministros da Educação Ney Braga e Euro Brandão – além do ex-ministro da Fazenda, Karlos Rischbieter. Dar aulas era uma de suas grandes paixões. Foi professor emérito da Faculdade Católica de Administração e Economia (FAE), instituição da qual foi um dos fundadores e o primeiro diretor. Também atuou como professor e membro do Conselho de Administração da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), que lhe concedeu, em 14 de março de 1989, a maior honraria acadêmica: o título de Doutor Honoris Causa. Já postumamente, por sua grande contribuição à Educação, a Prefeitura Municipal de Curitiba deu a um Centro de Educação Infantil (CEI) o nome de CEI Professor José Wanderley Dias – uma praça da cidade também foi nomeada em sua homenagem.

No entanto, mesmo com um vasto acervo de conquistas pessoais, Wanderley Dias nunca se deixou guiar por seu próprio sucesso: humilde, tinha os pés no chão e o coração no Alto. Dotado de fé inabalável, integrava diversos movimentos religiosos, como o Movimento Familiar Cristão. Era católico praticante, fervoroso, mas respeitava e era respeitado pelos seguidores de outras crenças – chegou a ser condecorado pelo Governo de Israel, no Congresso de Jornalistas e Escritores de Tel-Aviv, em 1991, por sua atuação conciliadora em relação às questões político-religiosas envolvendo o Oriente Médio. Participava também de diversas entidades comprometidas com a beneficência, como a Santa Casa de Misericórdia de Curitiba e o Rotary Club de Curitiba Leste (depois da morte de seu ilustre membro, o Rotary homenageou-o com a criação do Troféu Distrital José Wanderley Dias de Jornalismo).

“Se tivesse de começar tudo de novo, começaria escrevendo”, afirmou José Wanderley Dias em “De nuvens e de areia”, o primeiro de seus oito livros publicados. Quis o destino que ele terminasse tudo com palavras. Faleceu na noite de nove de julho de 1992, juntamente com sua esposa, em um acidente automobilístico ocorrido em Igarapé (MG), nas proximidades de Belo Horizonte. No dia seguinte, ainda sem a notícia do falecimento de seu mais notável cronista, o jornal Gazeta do Povo publicou o texto deixado por ele antes da fatídica viagem, intitulado “Quando eu morrer”. Assim ele encerrou sua última crônica: “Nossos esforços deveriam ser conduzidos, ou pelo menos tentados para que, quando morrêssemos: merecêssemos uma lágrima em memória dos sorrisos que houvéssemos possivelmente propiciado; deixássemos alguma saudade, em face das esperanças que tivéssemos possibilitado; (...) as velas que acendessem rememorassem as luzes que tivéssemos posto a iluminar; ganhássemos uma palavra pelos instantes em que tivéssemos ouvido e um instante de reflexão e silêncio pelas palavras que houvéssemos dito um dia; que não morrêssemos de todo ou para sempre, pela vida que tivéssemos conseguido transmitir, preservar ou ajudar...”. Ao ler suas palavras finais, em meio às dúvidas evocadas pela morte, os leitores tiveram ao menos uma certeza: com tanta vida que transmitiu, preservou e ajudou, José Wanderley Dias conseguira a imortalidade.

*Por Vinícius Dias, neto de José Wanderley Dias (e advogado e jornalista como o avô).

Rhámar l'Húmistan: pseudônimo "amigo"

Sempre em contato próximo com a cultura indiana, por conta de sua esposa, Neuza, pioneira professora de Yoga, José Wanderley Dias escreveu muitas de suas crônicas sob o pseudônimo "Rhámar l'Húmistan", um suposto filósofo que atuava no "ashram" (lugar de oração) chamado "Onde a lua bate à janela pedindo para entrar". Wanderley se referia a Rhámar como "o amigo" e dizia ser "tradutor" do sábio. E muitos de seus leitores acreditavam (e ainda acreditam) mesmo que Rhámar era um mestre indiano a quem Wanderley Dias traduzia. No entanto, tratava-se de fato de um alter ego do autor. Tanto assim que, em seu primeiro livro exclusivo de crônicas por ele atribuídas a Rhámar l'Húmistan, O que o vento conta, Wanderley Dias faz sua dedicatória a sua família e amigos e assina "R.l'H". Já no prefácio da obra, sua Neuza a certa altura escreve estar "orgulhosa e feliz por prefaciar Wanderley Dias" e, em seguida, faz graça: "Ou estarei prefaciando Rhámar l'Húmistan"? Ela ainda afirma que "todos nós temos direito à privacidade, ou pelo menos a um segredo". E completa: "Por isto, não me perguntem quem é Rhámar l'Húmistan. Façamos o seguinte. Leiam primeiro e vejam se gostam das histórias que o vento conta. Se gostarem, verão que já não importa tanto saber quem é Rhámar l'Húmistan. Afinal, quem é Wanderley Dias? Quem sou eu? Quem é você? Dia virá em que seremos UM".

Em seu outro livro apenas com crônicas atribuídas a Rhámar l'Húmistan, Ao som das flautas de bambu, também notam-se claras evidências de que Rhámar era mesmo um pseudônimo de José Wanderley Dias. Já no prefácio da obra, a grande poetisa Helena Kolody não faz mistério: "Filósofo-poeta, mestre consumado, Wanderley Dias, em seu novo livro Ao som das flautas de bambu semeia fecundos ensinamentos nos jardins de suas histórias bem urdidas". Em seguida, ao apresentar o livro, a escritora Flora Camargo Munhoz da Rocha questiona: "Apresentando Rhámar l'Húmistan... ou Wanderley Dias?". Ela afirma: "Recebemos, como bálsamo, os ensinamentos do místico pensador, agradecendo a Wanderley Dias que nos trouxe Rhámar l'Húmistan (...). Mas Wanderley Dias não é só o entusiasta tradutor (?) de Rhámar l'Húmistan, é mais e muito mais". E completa: "Quero terminar com uma pergunta que propositadamente deixo irrespondida. Até que ponto Wanderley Dias traduz (?) Rhámar l'Húmistan? Até que ponto os dois são dois, ou são um só? Até que pontos somos nomes próprios ou de fantasia? A resposta à interrogação que se desdobra em perguntas que se unificam está no que Rhámar escreve, como também no que seu tradutor (?) escreve".

Com muito mais pra dizer...

"Muito escrevi. Muito falei então, já que escrever é falar por escrito. Muito mais, porém, deixei de falar. Havia e há mais, muitíssimo mais pra dizer.

Que eu não direi. Porque me faltará tempo. (...)

Uma felicidade tive: nunca escrevi o que me tivesse sido imposto para escrever. Mas um tributo paguei: nem sempre pude falar o que queria e até o que deveria falar. (...)

Não me arrependo, porém, do que pensei. Do que falei. Do que escrevi. Porque fui chamado a fazê-lo. A comunicação é também uma vocação, muito mais do que uma profissão. Ordenei pensamentos e assinei-os dez mil vezes. (...)

As ideias continuam fervilhando. Isto sem que, por outro lado, deixasse de haver momentos em que não sabia o que escrever. Há assuntos que andam à cata do escritor que os soubesse interpretar. Há escritores que catam assuntos desesperadamente.

Comigo aconteceu uma coisa e outra. Porque escrever é viver. E nem sempre entendemos plenamente a existência. De um modo ou doutro, cheguei até aqui. Sou feliz com isto. Se pudesse voltar atrás, começaria tudo de novo, como está na canção conhecida.

Escreveria tudo outra vez. Corrigindo muitas falhas. Que só percebi mais tarde, felizmente não tarde demais. Agora, vou ao seu encontro. Porque você me deu o assunto. Porque você me deu a razão de escrever: Você, que eu tentei descrever em dez mil referências. Que ficam necessariamente incompletas. Porque eu sou incompleto também.

Há muito mais ainda a dizer, muito mais a sonhar, muito mais a transmitir. Eu não poderei fazê-lo sozinho. Ainda que, por algum tempo ainda, eu continue a caminhada. Na qual me faltarão muitas palavras. Talvez as mais importantes. Certamente as mais valiosas. Porque há muito, muitíssimo mais pra dizer! "

*José Wanderley Dias, em Com muito mais pra dizer, crônica publicada em livro de mesmo nome, comemorativo às 10.000 edições da coluna A Vista do Meu Ponto.